quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

"Hotel flutuante" (Pénichette) , qualquer lugar da França


Quer deixar todo mundo babando ? Comece contando que vai fazer um cruzeiro na França . Mas não é destes que todo mundo faz, não. E’ um cruzeiro fluvial. Trata-se de deslizar preguiçosamente por canais navegáveis durante uma semana... pilotando (isso mesmo, é você que vai ficar atrás do timão ) uma pénichette.  Tem mais : não vai pagar caro e ainda por cima, vai levar a mulher, os filhos e até o bebê de um ano e meio. Mas antes de tudo é preciso descrever o que é uma pénichette, pois esta palavra talvez não soe muito familiar aos seus ouvidos e afinal de contas você vai mesmo ter que explicar esta viagem aos amigos, tintin por tintin.

Comece pelo nome : a pénichette  ( observação número  1 : ao invés de se deixar taxar de esnobe,  deixe claro que não existe tradução deste substantivo em português) é um diminutivo da péniche, aquelas imensas embarcações comerciais que trafegam diariamente nos canais europeus, em geral transportando cargas. Embora os nomes sejam bastante semelhantes, estas matronas fluviais nada têm a ver com as pénichettes, que são embarcações “miniaturadas”, projetadas para o lazer, viraram até marca e cuja expansão floresceu a partir dos anos 80 devido à grande procura pela navegação fluvial com  o simples propósito de fazer turismo.

Depois, verdade seja dita :  é o tipo de programa à la Tintim, ou seja, agrada dos 7 aos 77 anos de idade. ( Observação número 2 : explique aos interlocutores mais jovens que Tintin é aquele famoso repórter belga das histórias em quadrinhos, que rodava o mundo usando todos os meios de locomoção, mas que infelizmente não foi retratado numa pénichette porque naquele tempo o turismo fluvial ainda não estava na moda ) . Não há quem duvide que viajar a bordo de uma pénichette tripulada por você mesmo é uma experiência de viagem diferente. Daquelas que a gente fica falando o ano inteiro, lembrando os mínimos detalhes. Só não serve para quem tem pressa de chegar ao destino, porque a rotina é de mansidão.  

A rotina é de mansidão, pois não se passa de 10 km/h, ou seja, até andando você vai mais rápido!



As eclusas floridas fazem parte do cenário


A paisagem muda a cada instante e todo dia reserva uma surpresa

Apesar disso, ela tem sabor de aventura. Explique que é aventura no bom sentido, planejada, onde tudo dá certo. A 10 quilômetros por hora, que é o máximo permitido nos canais navegáveis, todos hão de concordar :  nesta velocidade nem susto dá para ter. Também ninguém vai embarcar com a família numa pénichette e sair navegando pelos rios sem rumo e ao Deus dará. Em toda a Europa,  são centenas de itinerários traçados e só na França existem quase 9 mil quilômetros de vias navegáveis. Ou seja,  você sempre segue um roteiro determinado com antecedência. E se alguém engatar na conversa uma daquelas ladainhas sobre segurança a bordo, complicações de motor, dificuldade de manejar o barco e outras coisas mais, conte como funcionam os procedimentos na hora de iniciar o passeio. O controle do barco é tão simples que as companhias locadoras ( só na França são mais de 40) sequer exigem dos turistas uma carteira de habilitação ou qualquer prática anterior. 

Não que sejam irresponsáveis ou que não se importam se você colidir com todas as embarcações que encontrar pela frente. Criaram, sim, um sistema de iniciação, eu diria uma espécie de auto-escola fluvial, que funciona da maneira mais prática possível : na data ( e hora ) marcada para você começar a viagem, você chega de mala, mulher e filhos a tiracolo no escritório à beira-rio da companhia locadora onde ficou definido o seu cais de embarque. 

Neste cais, que pode ser em qualquer ponto de uma das regiões que você escolheu para fazer o passeio, estão baseados os técnicos responsáveis. Depois de preencher fichas e verificar as papeladas de última hora, um dos funcionários leva a turma até a pénichette que lhe foi designada. A gente embarca, recebe as chaves e uma explicação teórica sobre a sinalização fluvial, com direito à demonstração do funcionamento do motor e sua parte elétrica. Todas as manhas dos botões, luzes, tomadas, calefação e das aparelhagens sanitárias do barco também entram na pauta explicativa. Tudo isso leva menos de 15 minutos.  (Observação número 3 : há uma grande probabilidade do gentil funcionário francês engrenar automaticamente no idioma local e você não entender. Caso isto ocorra, não hesite em pedir para ele falar em inglês. Hoje em dia, os franceses já arranham bem a língua de Shakespeare) .
A segunda etapa consiste em receber das mãos do funcionário os mapas, manuais e guias detalhados da região. Aos poucos, a gente se familiariza com esta farta literatura contendo informações esmiuçadas sobre os trechos navegáveis com as respectivas demarcações , abastecimento de água, cabines telefônicas, comércio, restaurantes, lugares históricos  e os principais pontos turísticos.  “Ainda não vi quando é que você aprende a dirigir esse negócio aí,” vai interromper um interlocutor. Calma. E’ verdade, até então era só teoria. Que durou, na prática, outros meros quinze minutos. 

 Observação número 4 : mas a esta altura, as crianças já exploraram o barco da proa ao convés, já escolheram a suas camas, já brigaram e obviamente já deixaram cair alguma coisa dentro d’ água. Lembre-se : mesmo tendo tudo que uma casa de verdade tem, com quartos, suítes, banheiros, cozinha equipada e sala de estar, um barco sempre fica sobre um canal, e tudo que cair do lado de fora dele vai  a) ficar molhado ; b) submergir – leia-se revistas, toalhas, roupas secando no convés, etc. E’ claro que algumas coisas flutuam, mas a experiência própria me ensinou que aparelhos odontológicos infantis não flutuam.)

Dá para chegar quase dentro dos vilarejos e o programa é explorar a pé cada um deles


Tão logo a teoria acabou, o aprendizado,  na lata mesmo, está para começar. E’ de praxe formar pequenos grupos  (há outros turistas pegando as suas pénichettes no mesmo lugar, na mesma hora) que são levados por um instrutor numa das embarcações ( pode até ser a sua) até a eclusa mais próxima do ponto de embarque. Ih! Olha aí : este é mais um vocábulo que a partir daquele momento e até o final de sua viagem vai acabar fazendo parte do seu dia-a-dia.  Só que para os leigos, vai ser preciso traduzir.  (Observação número 5 : o melhor de tudo é que , felizmente para você que já foi taxado de esnobe, esta palavra existe em português e tem até duas traduções ; eclusa ou comporta. Você decide!)
Sair ou entrar numa eclusa não requer experiência prévia e até criança consegue fazer a manobra

A eclusa, que por um lado representa a principal dificuldade na navegação fluvial,  é parte integrante da vida de um canal ou de um rio canalizado. E’ ela que permite a subida e descida de embarcações por trechos onde há uma diferença do nível do leito. As travessias podem ser de rio abaixo ou de rio acima. Algumas demoram de dez a quinze minutos para atravessar, outras mais, dependendo não só do desnível ( quanto maior mais tempo demora) como até mesmo das filas, pois é claro que todo mundo que transita no canal está  “no mesmo barco”. Mas, depois de ter atravessado três ou quatro eclusas, tira-se a manobra de letra. 
   
Foie gras é de praxe na França...

Desculpe-se pelo aparte e vamos à prática : todos os turistas-dublê-de-capitães que acabaram de receber as chaves de suas pénichettes têm que aprender a passar por uma eclusa. E olha, pode apostar que dirigir uma embarcação desta não é nenhum bicho de sete cabeças. Pelo contrário: em menos de uma hora, está feito o aprendizado. Não só para você,  maior de idade e vacinado. Qualquer moleque a partir de 10 anos com alguma habilidade e bom senso tem plena capacidade para pilotar uma pénichette sem colocar a família em perigo de vida.  Aliás, eu diria até que para qualquer um , dirigir é uma brincadeira de criança. Tá vendo como é que é?  Os pais curtem, as crianças curtem e, pasmem ! até mesmo os pré- adolescentes  se divertem .( Observação número 6 : como são sempre difíceis de agradar, uma estratégia é permutar as reclamações diárias pelo controle do timão. Afinal, quem não gosta de assumir o papel de capitão ?) 


Outro detalhe importante na segurança de uma pénichette : a embarcação não aderna. Mais uma palavra técnica, que quer dizer inclinar sobre um dos bordos.  E’ por isso que fazer uma viagem destas com filhos pequenos representa muito pouco risco. E’ claro que ninguém vai deixar um bebê sozinho engatinhando no convés, por mais que este seja cercado por guarda-mancebos, aquele “corrimão” que emoldura o barco. Contudo, as passagens pelas eclusas devem exigir uma atenção especial de toda a tripulação. Nada de estrepolias durante a manobra. Nos canais também existem leis de trânsito, com direito a sinal verde e tudo, e são respeitadas. Por exemplo, as jamantas comerciais têm prioridade na hora de atravessar uma eclusa. O jeito é esperar a vez com paciência, já que as manobras alheias podem durar meia hora, ainda mais se forem duas ou três péniches. Algumas chegam a medir 38 metros de comprimento, contra os 10 de uma embarcação de lazer. Mas, convenhamos, é justo, pois o pessoal ali está a trabalho e você está de férias. Quer uma dica ?  Aguarde a vez degustando um bom vinho francês sentado no convés.

Pior do que eclusas em demasia só turistas em profusão. Se é para ver trânsito, mesmo que seja de barcos, é melhor ficar em casa. Canais congestionados realmente não são agradáveis. E, na hora de atracar, não tem graça ficar brigando por causa de uma vaga. Mas como ter certeza que a gente vai cair numa época boa ? Os períodos dissecados pelas locadoras – alta, baixa, média, pré e pós-  determinam o maior ou menor número de turistas. E elevam ou decepam os preços.  Mas eles levam em conta as estações : quanto mais frio supõe-se que vai fazer, mais barato fica o cruzeiro. Suposições que hoje em dia, com todos estes fenômenos soltos por aí, já não acertam em quase nada. Quando fomos, em pleno mês de junho, em geral aberto e quente, houve chuva e o sol não tostava. E quase não tinha movimento, porque estava fora da alta estação. ( Observação número 7 : para evitar multidões nos canais, não se fie muito nos períodos-chaves das estações. Ao invés de seguir o seu instinto meteorológico, fareje o calendário das férias escolares – alheias. Cada país europeu achou por bem espalhar as datas em semanas diferentes. Informe-se. E’ sempre bom saber com quem você vai conviver nas águas).




De modo geral, quem pratica turismo fluvial é extremamente cortês e relaxado. O cidadão local, aquele que você vê pescando do outro lado da margem, também vai responder ao seu aceno de mão sempre que você não tiver a brilhante idéia de passar com o barco por cima de sua linha para lhe perguntar quantos peixes fisgou.  Outra coisa que você se acostuma é à sua rotina dentro de uma casa flutuante. No primeiro dia, a gente até acha o espaço um pouco estreito. Afinal, são menos de 4 metros de largura por dez de comprimento. Passa uma criança aqui, corre outra ali e a bagunça está feita. Recomendo colocar ordens explícitas logo no início. Distribuição de tarefas: um arruma, o outro lava a louça, a terceira varre e joga o lixo fora. Até aqui estamos falando apenas das crianças. Em pénichette que se preza, todo mundo trabalha. Até você. E não é só no timão. Pode tratar de pilotar também o fogão de vez em quando.

A luz do dia pode mudar mas o ar romântico não se perde

Mas ao entardecer, depois de ter deslizado preguiçosamente por uma dezena de quilômetros, passado em diversas eclusas , nada mais gostoso do que escolher um bonito local no meio do nada, rodeado por pastos cheios de animais, e sair pelas estradinhas campestres pedalando. E’ a melhor forma para se conhecer a redondeza. Tranca-se a embarcação como se tranca a porta de casa e pronto! O quintal é tudo que está aí fora.  Você acaba encontrando um simpático restaurante no vilarejo, senta para degustar um copo de vinho, faz as compras no supermercado para o café da manhã do dia seguinte e volta para o barco. Dependendo da época do ano, só anoitece depois das oito e o pôr-do-sol ainda oferece um espetáculo extra. Um dia de cruzeiro fluvial rende como poucos. E se os seus interlocutores ainda duvidarem que você vai fazer uma viagem maravilhosa, diferente, que nem consta do mapa, então mande eles esperarem até verem as suas fotos.

De bicicleta se passeia ao longo do chemin de halage, acompanhando o ritmo da pénichette...



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