Quer deixar todo
mundo babando ? Comece contando que vai fazer um cruzeiro na França . Mas não é
destes que todo mundo faz, não. E’ um cruzeiro fluvial. Trata-se de deslizar
preguiçosamente por canais navegáveis durante uma semana... pilotando (isso
mesmo, é você que vai ficar atrás do timão ) uma pénichette. Tem mais : não
vai pagar caro e ainda por cima, vai levar a mulher, os filhos e até o bebê de
um ano e meio. Mas antes de tudo é preciso descrever o que é uma pénichette, pois esta palavra talvez não
soe muito familiar aos seus ouvidos e afinal de contas você vai mesmo ter que
explicar esta viagem aos amigos, tintin por tintin.
Comece pelo nome
: a pénichette ( observação
número 1 : ao invés de se deixar taxar
de esnobe, deixe claro que não existe
tradução deste substantivo em português) é um diminutivo da péniche, aquelas imensas embarcações
comerciais que trafegam diariamente nos canais europeus, em geral transportando
cargas. Embora os nomes sejam bastante semelhantes, estas matronas fluviais
nada têm a ver com as pénichettes,
que são embarcações “miniaturadas”, projetadas para o lazer, viraram até marca
e cuja expansão floresceu a partir dos anos 80 devido à grande procura pela
navegação fluvial com o simples
propósito de fazer turismo.
Depois, verdade
seja dita : é o tipo de programa à la Tintim, ou seja, agrada dos 7 aos
77 anos de idade. ( Observação
número 2 : explique aos interlocutores mais jovens que Tintin é aquele famoso
repórter belga das histórias em quadrinhos, que rodava o mundo usando todos os
meios de locomoção, mas que infelizmente não foi retratado numa pénichette porque naquele tempo o
turismo fluvial ainda não estava na moda ) . Não há quem duvide que
viajar a bordo de uma pénichette
tripulada por você mesmo é uma experiência de viagem diferente. Daquelas que a
gente fica falando o ano inteiro, lembrando os mínimos detalhes. Só não serve
para quem tem pressa de chegar ao destino, porque a rotina é de mansidão.
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A rotina é de mansidão, pois não se passa de 10 km/h, ou seja, até andando você vai mais rápido! |
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As eclusas floridas fazem parte do cenário |
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A paisagem muda a cada instante e todo dia reserva uma surpresa |
![](https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhK9fsbFZoZqQpsHytaBezT582_mG2o21N-uyw8dVSCMNB2i7_-CBWQ_cSMT2eNJ86DrX7SzmNL_tSX_Ppa7chAStp3pKCe6phFp_6L7OcVFrnEeb9qyvqdTzZbxQLd679aahk7XGq2nJX4/s320/ostras+da+Bretanha.jpg)
Não que sejam irresponsáveis ou que não se
importam se você colidir com todas as embarcações que encontrar pela frente.
Criaram, sim, um sistema de iniciação, eu diria uma espécie de auto-escola
fluvial, que funciona da maneira mais prática possível : na data ( e hora )
marcada para você começar a viagem, você chega de mala, mulher e filhos a
tiracolo no escritório à beira-rio da companhia locadora onde ficou definido o
seu cais de embarque.
Neste cais, que pode ser em qualquer ponto de uma das
regiões que você escolheu para fazer o passeio, estão baseados os técnicos
responsáveis. Depois de preencher fichas e verificar as papeladas de última
hora, um dos funcionários leva a turma até a pénichette que lhe foi designada. A gente embarca, recebe as chaves
e uma explicação teórica sobre a sinalização fluvial, com direito à
demonstração do funcionamento do motor e sua parte elétrica. Todas as manhas
dos botões, luzes, tomadas, calefação e das aparelhagens sanitárias do barco
também entram na pauta explicativa. Tudo isso leva menos de 15 minutos. (Observação
número 3 : há uma grande probabilidade do gentil funcionário francês engrenar
automaticamente no idioma local e você não entender. Caso isto ocorra, não
hesite em pedir para ele falar em inglês. Hoje em dia, os franceses já arranham
bem a língua de Shakespeare) .
A segunda etapa
consiste em receber das mãos do funcionário os mapas, manuais e guias
detalhados da região. Aos poucos, a gente se familiariza com esta farta
literatura contendo informações esmiuçadas sobre os trechos navegáveis com as
respectivas demarcações , abastecimento de água, cabines telefônicas, comércio,
restaurantes, lugares históricos e os
principais pontos turísticos. “Ainda não
vi quando é que você aprende a dirigir esse negócio aí,” vai interromper um
interlocutor. Calma. E’ verdade, até então era só teoria. Que durou, na
prática, outros meros quinze minutos.
Observação
número 4 : mas a esta altura, as crianças já exploraram o barco da proa ao
convés, já escolheram a suas camas, já brigaram e obviamente já deixaram cair
alguma coisa dentro d’ água. Lembre-se : mesmo tendo tudo que uma casa de
verdade tem, com quartos, suítes, banheiros, cozinha equipada e sala de estar,
um barco sempre fica sobre um canal, e tudo que cair do lado de fora dele
vai a)
ficar molhado ; b) submergir –
leia-se revistas, toalhas, roupas secando no convés, etc. E’ claro que algumas
coisas flutuam, mas a experiência própria me ensinou que aparelhos
odontológicos infantis não flutuam.)
Dá para chegar quase dentro dos vilarejos e o programa é explorar a pé cada um deles |
Tão logo a
teoria acabou, o aprendizado, na lata
mesmo, está para começar. E’ de praxe formar pequenos grupos (há outros turistas pegando as suas pénichettes no mesmo lugar, na mesma
hora) que são levados por um instrutor numa das embarcações ( pode até ser a
sua) até a eclusa mais próxima do ponto de embarque. Ih! Olha aí : este é mais
um vocábulo que a partir daquele momento e até o final de sua viagem vai acabar
fazendo parte do seu dia-a-dia. Só que
para os leigos, vai ser preciso traduzir.
(Observação número 5 : o melhor de
tudo é que , felizmente para você que já foi taxado de esnobe, esta palavra
existe em português e tem até duas traduções ; eclusa ou comporta. Você
decide!)
Sair ou entrar numa eclusa não requer experiência prévia e até criança consegue fazer a manobra |
A eclusa, que
por um lado representa a principal dificuldade na navegação fluvial, é parte integrante da vida de um canal ou de
um rio canalizado. E’ ela que permite a subida e descida de embarcações por
trechos onde há uma diferença do nível do leito. As travessias podem ser de rio
abaixo ou de rio acima. Algumas demoram de dez a quinze minutos para
atravessar, outras mais, dependendo não só do desnível ( quanto maior mais
tempo demora) como até mesmo das filas, pois é claro que todo mundo que
transita no canal está “no mesmo barco”.
Mas, depois de ter atravessado três ou quatro eclusas, tira-se a manobra de
letra.
Foie gras é de praxe na França... |
Desculpe-se pelo
aparte e vamos à prática : todos os turistas-dublê-de-capitães que acabaram de
receber as chaves de suas pénichettes
têm que aprender a passar por uma eclusa. E olha, pode apostar que dirigir uma
embarcação desta não é nenhum bicho de sete cabeças. Pelo contrário: em menos
de uma hora, está feito o aprendizado. Não só para você, maior de idade e vacinado. Qualquer moleque a
partir de 10 anos com alguma habilidade e bom senso tem plena capacidade para
pilotar uma pénichette sem colocar a
família em perigo de vida. Aliás, eu
diria até que para qualquer um , dirigir é uma brincadeira de criança. Tá vendo
como é que é? Os pais curtem, as
crianças curtem e, pasmem ! até mesmo os pré- adolescentes se divertem .( Observação número 6 : como são sempre difíceis de agradar, uma estratégia
é permutar as reclamações diárias pelo controle do timão. Afinal, quem não
gosta de assumir o papel de capitão ?)
Outro detalhe
importante na segurança de uma pénichette
: a embarcação não aderna. Mais uma palavra técnica, que quer dizer inclinar
sobre um dos bordos. E’ por isso que
fazer uma viagem destas com filhos pequenos representa muito pouco risco. E’
claro que ninguém vai deixar um bebê sozinho engatinhando no convés, por mais
que este seja cercado por guarda-mancebos, aquele “corrimão” que emoldura o
barco. Contudo, as passagens pelas eclusas devem exigir uma atenção especial de
toda a tripulação. Nada de estrepolias durante a manobra. Nos canais também
existem leis de trânsito, com direito a sinal verde e tudo, e são respeitadas.
Por exemplo, as jamantas comerciais têm prioridade na hora de atravessar uma
eclusa. O jeito é esperar a vez com paciência, já que as manobras alheias podem
durar meia hora, ainda mais se forem duas ou três péniches. Algumas chegam a medir 38 metros de comprimento, contra
os 10 de uma embarcação de lazer. Mas, convenhamos, é justo, pois o pessoal ali
está a trabalho e você está de férias. Quer uma dica ? Aguarde a vez degustando um bom vinho francês
sentado no convés.
Pior do que
eclusas em demasia só turistas em profusão. Se é para ver trânsito, mesmo que
seja de barcos, é melhor ficar em casa. Canais congestionados realmente não são
agradáveis. E, na hora de atracar, não tem graça ficar brigando por causa de
uma vaga. Mas como ter certeza que a gente vai cair numa época boa ? Os
períodos dissecados pelas locadoras – alta, baixa, média, pré e pós- determinam o maior ou menor número de
turistas. E elevam ou decepam os preços.
Mas eles levam em conta as estações : quanto mais frio supõe-se que vai
fazer, mais barato fica o cruzeiro. Suposições que hoje em dia, com todos estes
fenômenos soltos por aí, já não acertam em quase nada. Quando fomos, em pleno
mês de junho, em geral aberto e quente, houve chuva e o sol não tostava. E
quase não tinha movimento, porque estava fora da alta estação. ( Observação número 7 : para evitar multidões nos
canais, não se fie muito nos períodos-chaves das estações. Ao invés de seguir o
seu instinto meteorológico, fareje o calendário das férias escolares – alheias.
Cada país europeu achou por bem espalhar as datas em semanas diferentes.
Informe-se. E’ sempre bom saber com quem você vai conviver nas águas).
De modo geral,
quem pratica turismo fluvial é extremamente cortês e relaxado. O cidadão local,
aquele que você vê pescando do outro lado da margem, também vai responder ao
seu aceno de mão sempre que você não tiver a brilhante idéia de passar com o
barco por cima de sua linha para lhe perguntar quantos peixes fisgou. Outra coisa que você se acostuma é à sua
rotina dentro de uma casa flutuante. No primeiro dia, a gente até acha o espaço
um pouco estreito. Afinal, são menos de 4 metros de largura por dez de
comprimento. Passa uma criança aqui, corre outra ali e a bagunça está feita.
Recomendo colocar ordens explícitas logo no início. Distribuição de tarefas: um
arruma, o outro lava a louça, a terceira varre e joga o lixo fora. Até aqui
estamos falando apenas das crianças. Em pénichette
que se preza, todo mundo trabalha. Até você. E não é só no timão. Pode tratar
de pilotar também o fogão de vez em quando.
A luz do dia pode mudar mas o ar romântico não se perde |
Mas ao
entardecer, depois de ter deslizado preguiçosamente por uma dezena de
quilômetros, passado em diversas eclusas , nada mais gostoso do que escolher um
bonito local no meio do nada, rodeado por pastos cheios de animais, e sair pelas
estradinhas campestres pedalando. E’ a melhor forma para se conhecer a
redondeza. Tranca-se a embarcação como se tranca a porta de casa e pronto! O
quintal é tudo que está aí fora. Você
acaba encontrando um simpático restaurante no vilarejo, senta para degustar um
copo de vinho, faz as compras no supermercado para o café da manhã do dia
seguinte e volta para o barco. Dependendo da época do ano, só anoitece depois
das oito e o pôr-do-sol ainda oferece um espetáculo extra. Um dia de cruzeiro
fluvial rende como poucos. E se os seus interlocutores ainda duvidarem que você
vai fazer uma viagem maravilhosa, diferente, que nem consta do mapa, então
mande eles esperarem até verem as suas fotos.
De bicicleta se passeia ao longo do chemin de halage, acompanhando o ritmo da pénichette... |
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