quinta-feira, 30 de junho de 2016

Vila Kalango, Jericoacoara, Ceará





  
Simples e bela: Jeri, um oásis entre dunas
  
O ano era 1991 quando um conhecido mencionou pela primeira vez o nome de Jericoacoara. Falava sobre um lugar remoto e muito especial, no litoral do Ceará,  que havia sido descoberto por hippies e meia dúzia de turistas intrépidos.  Mas até mesmo o nome, que na linguagem dos índios Tremembé significa " lugar de descanso para jacarés", era difícil de pronunciar e captar, quanto mais memorizar.



Porém, as poucas pessoas que já tinham estado lá garantiam que o lugar era nada menos do que fascinante, um oásis de tranquilidade debruçado sobre o mar e dunas altas,  emoldurando um pacato vilarejo de pescadores. Ansiosa por descobrir um destino fora da rota turística, comecei a procurar por alguma informação mais precisa sobre Jeri - como era assim chamado e cujo apelido perdura até hoje. Porém, todas as tentativas acabaram em frustração: nem mesmo os guias mais descolados tinham qualquer dica, e além de definições toscas  sugadas em folhetos de algum agente de viagem local, que prometiam "as melhores férias de sua vida nas praias mais preservadas do Brasil", não encontrei nada. 

Beleza selvagem em cada canto

Ao comentar com alguns amigos para onde iria, todos brincavam - "Jeri...o quê!?" e o resto, já dá para imaginar - qua,qua,qua!!! -  e a palavra se transformava rapidamente em zombaria. Ainda assim, quis pagar para ver e planejei uma ida a Jeri, levando a tiracolo marido e dois filhos pequenos.


Foram 305 quilômetros de estrada do aeroporto de Fortaleza até Jijoca, de onde enfrentamos um primeiro desafio: não existia ( e não existe até hoje) uma via de acesso asfaltada que levasse a Jeri;  Havia, sim, uma estrada de areia, sinuosa e sem sinalização, traçada entre dunas, que percorria os 23 quilômetros que a separavam desta cidadezinha. A opção era fazer este trajeto a bordo da marinete, uma espécie de ônibus sem portas nem janelas e bancos de madeira, único meio de transporte seguro para quem queria chegar ao destino sem atolar no areal. Por outro lado, a perspectiva de uma aventura que iria durar cerca de duas horas deixaram as crianças super animadas.

O pôr-do-sol é sempre concorrido pois os turistas sobem a duna para apreciar o final de tarde.

E a recompensa chegou na última curva, desvendando o cenário mágico de Jericoacoara: beirando o mar plácido, dezenas de casinhas rústicas encravadas no meio de um coqueiral, uma praia deserta e o sol rapidamente se transformando numa bola de fogo despencando atrás da linha do horizonte.   Em compensação, a nossa pousada estava muito aquém da magia:  um quarto mínimo, cama de alvenaria, sem luz elétrica ou água quente,   e um cano ao invés de um chuveiro. Amenidades, zero. As crianças rapidamente apelidaram o lugar de "Hilton Jeri", mas, ao mesmo tempo, pularam de alegria quando descobriram que iriam dormir nas duas redes penduradas encima do nosso colchão.

Redes: indispensáveis na cultura cearense
 Acessório indispensável na decoração nordestina, a rede está presente em dez entre dez residências no Ceará - da mais simples à mais luxuosa - e é uma indumentária tão típica e estimada que substitui facilmente a própria cama. Os ocupantes da casa, ricos ou pobres, não perdem uma oportunidade de descansar ou até mesmo pernoitar em suas redes. Pode conferir: uma vez que se dorme numa, dá para entender bem o porque.

Muito embora faltasse estética na acomodação, sobrava beleza neste vilarejo primitivo, com suas alamedas de areia, onde a população ainda utilizava lampiões a gás para iluminar as suas casas. Os restaurantes, modestos estabelecimentos familiares, serviam o famoso pf, com direito a todos os ingredientes locais: peixe fresco, lagostas e camarões, recém fisgados pelas redes. Servidos com arroz, feijão e farinha d´água, saciavam a fome por um preço, digamos, irrisório.




Na manhã seguinte, passeio obrigatório até a Pedra Furada,  formação rochosa que é o cartão postal mais ilustrativo da região, até hoje. E como não existia nenhuma maneira de se chegar até as praias afastadas, o jeito foi recorrer ao meio de transporte mais genuíno do Ceará: os jegues. E, todos os finais de tarde, subíamos a duna de 30 metros para assistir ao mais incrível pôr do sol. Após uns dias absorvendo a atmosfera fleumática de Jeri, contagiados pelo ambiente descontraído, já conseguíamos pronunciar seu nome. E voltamos para casa com a sensação de termos sido pioneiros.

Tudo isso foi há 21 anos atrás. Mas, até hoje,  Jeri continua um charme. E, felizmente,  apesar da fama crescente mundo afora, o lugar não sucumbiu ao turismo de massa e continua preservado. E, por mais inacreditável que pareça, todas as boas coisas passaram por melhorias. Por exemplo, a própria vila: virou reserva ambiental e graças a isso afastou maiores especulações imobiliárias que poderiam rapidamente desfigurar o perfil de Jeri. E embora a maioria das casas de pescadores mudou de mãos,  não deram lugar a aberrações arquitetônicas. Entremeada por ruas de areia, proliferaram pousadinhas charmosas e restaurantes gourmês, onde saboreia-se receitas sofisticadas oriundas da culinária francesa, tailandesa, italiana e iguarias regionais a preços que se comparam aos das cidades grandes. Surgiu também um comércio eclético que oferece desde artesanato regional a jóias caríssimas, artigos de luxo, butiques famosas  e grifes internacionalmente renomadas. O ambiente é uma torre de babel, onde se misturam turistas oriundos de todos os continentes do planeta, e ouve-se de francês a alemão, inglês, hebraico ou russo. Até os cardápios são bilíngües. O dress code  que impera dia e noite -  roupa de banho, canga, short e camiseta , sandália havaiana -  torna naturalmente todos iguais perante o mar. Paira no ar uma harmonia natural, não há sinal de violência e caminha-se sem susto a qualquer hora do dia e da noite.

Paraíso de windsurfe devido ao vento constante, Jeri atrai esportistas do mundo inteiro no inverno - ou "verão" cearense.


Em Jeri, até vendedor de caipirinha vende fiado. Explicação: por volta das 5 horas da tarde, começa uma peregrinação até a duna  para assistir ao – você adivinhou ! -  pôr-do-sol. Tem gente que sobe a pé, outros a cavalo e uns valentões encaram a subida de bicicleta.  Até o vendedor de caipirinha sobe , levando seu farnel com vários sabores de frutas tropicais. Como nem sempre os turistas têm algum dinheiro no bolso, ele abre uma conta em nome do freguês, para receber depois, de volta à vila. Jeri parece um palco a céu aberto, com milhares de figurantes, cada  um curtindo o seu próprio show.
Pousada Vila Kalango e os quartos sobre pilotis com vista espetacular!

O acesso complicado para Jeri também não descomplicou. Ou seja, a estrada de areia naturalmente limita o tráfego  e somente a marinete e veículos 4x4 autorizados continuam com acesso livre. E embora lugares como o " Hilton Jeri" ainda existam ( há opções para todos os bolsos), as pousadas de luxo oferecem cada vez mais comodidades e mordomias para hóspedes que, por sua vez, também se tornaram mais exigentes. Já por duas vezes nos hospedamos no charmosérrimo Vila Kalango, bem na beirinha da praia. A nossa suíte fica sobre pilotis, a uns quatro metros de altura. Show de vista,  rústico porém de extremo bom gosto. Mesmo que a rede seja onipresente em qualquer acomodação, como manda o figurino cearense, hoje se dorme em cama king size, aninhado em lençóis de algodão egípcio,  toma-se banho de chuveiro quente e se assiste a tv a cabo! - sim, você adivinhou, a luz elétrica chegou em Jeri! No final da noite, o vilarejo se transforma num imenso palco para forrós, festas e celebrações, onde se dança até o sol raiar.


O melhor é visitar Jeri de junho a janeiro, época que os locais descrevem como verão, pois não cai um pingo de chuva e faz calor. E´ a estação que mais atrai windsurfistas, principalmente em praias próximas como a do Preá., onde um verdadeiro arco íris de velas pincela com suas cores vivas o azul imaculado do céu.




Nenhum comentário:

Postar um comentário